quinta-feira, 3 de novembro de 2011

AS ESQUERDAS NO BRASIL: VAZIO UTÓPICO E CAPITALISMO LIVRE?

Algumas semanas atrás, li uma carta do professor Boaventura de Sousa Santos direcionada às esquerdas do mundo, as quais define como “um conjunto de posições políticas que partilham o ideal de que os humanos têm todos o mesmo valor, e são o valor mais alto”. Nesse documento, o sociólogo português fala dos frutos (sociais, políticos e econômicos) colhidos no século XX como resultados históricos da ação das esquerdas, pois, graças a elas, “o mundo tornou-se mais livre e mais igual”. Segundo o professor, sem esses resultados a democracia no mundo seria outra, com certeza mais ruim.


Apesar de destacar a importância histórica das esquerdas, Boaventura de Sousa Santos defende que, atualmente, o capitalismo encontra-se livre delas e voltou a mostrar sua vocação anti-social. Conforme o autor português, estaríamos vivendo um tempo em que o capitalismo encontra espaço aberto para continuar investindo na barbárie.

Ora, se o capitalismo encontra-se livre para reinar, é porque as esquerdas ou estão ausentes ou estão amordaçadas. Parece que elas vivem as duas situações. Mas, por que nos encontramos nessa situação? Por que temos que gritar, clamar e implorar para que as esquerdas acordem ou tirem a mordaça da boca e se insurjam contra a barbárie?

Não tenho a pretensão de responder a questão em sua complexidade, mas de emitir uma opinião.

Creio que esse sono (ou ópio?) profundo ou a ausência das esquerdas tem a ver com o vazio utópico que estamos vivendo no Brasil contemporâneo, vazio que, como nos mostram alguns estudiosos (as) comprometidos (as) com a transformação social, diz respeito ao fato de que nunca nos tornamos verdadeiramente nação, ou seja, historicamente, sempre fomos impedidos de nos constituir como nação, temos sido golpeados neste desejo. Não conseguimos completar nossa modernidade e já estamos sofrendo os impactos de um modelo de desenvolvimento pós-moderno.

O Brasil, como todo o planeta, vem sofrendo as conseqüências do vazio utópico e da hegemonia da sociedade de mercado globalizado. O processo de destruição das utopias se reflete no Brasil através da sedimentação de uma racionalidade instrumental fundamentada na lógica de mercado e na adesão das lideranças econômicas e dos grupos políticos a expansão da internacionalização financeira (Uriban Xavier, 2006). A visualização desse processo pode ser observada em vários fenômenos, vejamos alguns:


  • Sucateamento e precarização dos serviços públicos estatais como forma de ampliação do mercado de serviços;
  • Destituição da solidariedade orgânica (Durkheim), que promovia a responsabilidade das instituições (Estado e Mercado) pela proteção social (agora, cada indivíduo tem que se virar para construir seu próprio destino);
  • Rejeição da ética responsável como fundamento e cuidado com a vida;
  • Desterritorialização e impessoalidade nas relações sociais;
  • A racionalidade instrumental colonizando as relações políticas (tudo pode pelo, através e para o dinheiro);
  • A política é normatizada pela lógica do mercado: compra de votos, cargos, informações, projetos de leis, partidos e poder; não importa se o político não tem qualidade, vínculo e nem compromisso, tudo pode e é possível;
  • Superação da pobreza com a manutenção de um modelo de desenvolvimento que a produz, reproduz e que destrói o meio ambiente.

Sabemos que nos anos 90, do século XX, o Brasil, junto com vários outros países da América Latina, é submetido a um conjunto de transformações, no âmbito da “mundialização do capital”, que se materializaram num ciclo de ajustes, via “Consenso de Washington”, cujos impactos alteraram profundamente a vida social, política e econômica do país; provocaram também mudanças no modelo de Estado, que passa a se ajustar à nova ordem. É assim que o Estado brasileiro assume a nova lógica do capital, valorizando e viabilizando seus desejos e projetos (privatização do patrimônio público, destituição dos direitos, entrega do patrimônio natural à iniciativa privada, desemprego estrutural, destruição do meio ambiente, dentre outros projetos e ações).

Muitos e muitas sonhavam que, com a vitória do PT e das forças progressistas e democráticas a ele aliadas, o Brasil rumaria noutra lógica, efetivando as inversões estruturais necessárias no modo de governar, e aprofundaria a cidadania que vinha sendo construída pelos movimentos sociais e pela sociedade organizada, ancorada na participação popular e democrática, na luta pela efetivação dos direitos e na construção de um novo projeto de Brasil.

Nesse sentido, vale lembrar uma análise-síntese feita pelo cientista político José Luis Fiori (1997), que afirma que “o Estado mudou de cara, mantendo a mesma alma”. Assim, podemos dizer que o Estado, desde que passou a ser controlado pelo PT e seus aliados, vem imprimindo mudanças, mas são “mudanças na permanência”, porque não alteraram e não alteram o modelo promotor de exclusão, desigualdade e pobreza. Em primeiro lugar, atende aos interesses e as exigências das novas formas de valorização do capital. Depois, oferece políticas e programas compensatórios para a população.

Vivemos, portanto, um tempo de transfiguração da política, da ética e das relações sociais. Vivemos um tempo de vazio utópico, de esquerdas amordaçadas e alheias à transformação social.

Mas, podemos dizer com esperança, que vivemos um tempo de novas oportunidades e possibilidades: de refundação da vida; de retomada da cultura política forjada na noção de cidadania como luta e conquista; de resgate e fortalecimento da criatividade cultural e da mística popular; de instituição de um novo dissenso (Rancière), capaz de devolver a palavra e o espaço público ao excluído e a excluída (moradores pobres, famílias sem teto, trabalhadores sem terra, mulheres, negros, índios, minorias discriminadas), desprivando e desprivatizando a política, capaz de insurgir-se contra a cultura política dominante.



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