Nesses últimos dias, sob um movimento de devaneio do espírito, inquieto senti-me pensando em dois grandes poderes: o poder da palavra e do corpo, elementos fundantes e mediadores da comunicação. E me perguntei: qual desses poderes tenho acessado mais em meu cotidiano? A resposta foi óbvia: o poder da palavra, do verbo. Logo, conclui: falo mais com o verbo do que com o corpo.
Na inquietude dessa reflexão, buscando entender melhor a razão pela qual nos comunicamos pouco com nosso próprio corpo, me fez pensar o quanto somos exageradamente racionais e não exploramos, mobilizamos as nossas inteligências que caracterizam e configuram esses poderes. É, a gente tem muitas inteligências. Foi isso que descobriu o psicólogo Howard Gardner, que afirma que nós temos dez inteligências: linguística, que se manifesta na habilidade para lidar com as palavras nos diferentes níveis de linguagem; a lógico-matemática, a que determina a habilidade para o raciocínio dedutivo; a musical, que nos permite organizar sons de maneira criativa; a intrapessoal, que é a capacidade que tem uma pessoa para conhecer-se e estar bem consigo mesma, gerenciando bem seus sentimentos e emoções; a interpessoal, capacidade de se dar bem com outras pessoas e grupos; a espacial, capacidade de formar um modelo mental adequado das situações espaciais em que se encontra e orientar-se em direção aos seus projetos pessoais e coletivos; a corporal-cinestésica, é a inteligência que se revela como uma especial habilidade para utilizar e se comunicar com o próprio corpo de diversas maneiras; a naturalista, a sensibilidade para distinguir os seres vivos e outros elementos da natureza; a pictórica, capacidade de reproduzir pelo desenho, objetos e situações reais ou mentais; a existencial, capacidade e competência para ponderar sobre a vida e a morte e outras realidades.
Quando me dei conta desse número grande de inteligências, percebi que nós só mobilizamos uma mais cotidianamente: a linguística. Na verdade, nós nem cogitamos a possibilidade de que nossa existência, nossa materialidade ou presença no mundo se explicita ou emerge através de nosso corpo; que deveríamos conceber e mobilizar essas inteligências integradamente, explorando-as, tornando-as nossas parceiras na construção de nós mesmos e de nós mesmas, e da (nova) sociabilidade. Mas, por que será que não nos comunicamos com o corpo (inteligência corporal-cinestésica)? Por que nos distanciamos tanto de nosso corpo, apesar de uma ênfase muito grande, neste tempo de culto ao corpo, a esse elemento via a estética, a beleza? Mas, será que um corpo bem torneado, bem demarcado do ponto de vista físico, reflete ou demonstra que mobilizamos e nos comunicamos potencialmente com ele e através dele, enfim, que construimos e afirmamos nossa existencialidade no cotidiano de nossas vidas?
Sem querer oferecer uma resposta definitiva para as questões, podemos arriscar dizer que esse fato tem a ver com uma das heranças de nossa história e da história de nosso corpo: no Ocidente, aprendemos a cultivar mais a palavra do que corpo, corpo entendido aqui como uma multiplicidade de dimensões e possibilidades, como lugar e mediação comunicativa, como lugar e estrada de experiências e tessituras da vida.
Na verdade, teríamos que resgatar e atualizar em nós a nossa ancestralidade, o que quer dizer que precisamos nos redescobrir redescobrindo nosso corpo em suas origens: a nossa herança africana, a nossa afrodescendência. É neste berço que podemos (re) encontrar o sentido de nosso corpo. É como diz o francês Jacques Gauthier, filósofo, poeta e pedagogo: “o corpo de cada de um nós é uma forma de vida, que por ter uma história (...) e raízes ancestrais ainda atuantes, vivas, irradiantes, sabe muitas coisas – algumas claras, outras escuras e outras claras-escuras. Assim, podemos afirmar que o corpo pensa”.
Na perspectiva da cosmovisão africana, não há separação entre o corpo e a palavra, esses elementos estão integrados; o corpo é fonte e meio de produção da vida, de saberes e experiências, é produtor de cultura.
René Barbier, outro estudioso francês, nos ensina que uma pessoa só existe pela existência de um corpo, de uma imaginação, de uma razão, de uma afetividade em permanente interação. Assim, podemos tudo com o nosso corpo: ousar e sentir cheiros, toques, olhares, sons, tons...
Só de uns tempos para cá é que entendi a importância do movimento, da ginga, da relação do corpo com a natureza. E entendi isso através das leituras e vivências com os quilombolas, alguns professores e professoras, outros e outras líderes, educadores, educadoras, artístas e militantes da causa racial no Brasil. Me lembrei muito do que nos ensina Eduardo Oliveira em sua obra “Filosofia da Ancestralidade” (2007): ele nos ensina que o corpo inaugura outro maneira de ser, um outro modo de aprender e viver a vida. O corpo, na cultura de matriz afrodescendente, é compreendido a partir de três princípios: diversidade, integração e ancestralidade. O corpo, portanto, segundo esse autor, é uma síntese de uma filosofia, de uma cultura, signo de uma arte.
Parece certo dizer que fomos saqueados, desde a nossa constituição como nação, de nosso corpo. Entendo agora porque os coronéias maltratavam, batiam, acorrentavam e matavam os negros e negras - vidas-corpos africanos. Queriam destruir, na verdade, um outro modo de ser, de pensar e viver neste mundo, queriam destruir uma sabedoria milenar. Foi essa elite, aliada a outros setores e em diferentes momentos históricos, que impôs uma única maneira de ser, pensar e viver: através da racionalidade, portanto, através da palavra.
Nossas relações na atualidade, você deve concordar leitor e leitora, são pautadas, em grande medida, pela palavra. Não nos comunicamos ou nos comunicamos pouco com o corpo. Desaprendemos que o corpo é um universo e uma singularidade. Não quero dizer com isso que a palavra não seja fundamental em nossas relações e projetos, na construção de nós mesmos, de nós mesmas e da sociedade.
Será que é possível uma reinvenção de nós mesmos e de nós mesmas a partir de nosso corpo? Como podemos mobilizar mais esse poder universal e ancestral que é o nosso corpo?
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