ONGs

ALGUMAS DIMENSÕES DO PROCESSO DE FORMAÇÃO DAS ONGs

Este é o terceiro artigo no qual tratamos sobre o tema da formação no campo das ONGs e das organizações do Terceiro Setor.

Um pressuposto da Formação

Um pressuposto importante para a construção de uma proposta de formação no campo das ONGs e do Terceiro Setor diz respeito às dimensões que podem ser priorizadas ou privilegiadas no trabalho formativo. Essas dimensões podem nos ajudar a definir os objetivos, as estratégias, a estrutura, as temáticas do processo de formação.

Dimensão 1: Sociopolítica-cultural

Nesta dimensão seriam organizadas as temáticas e as atividades formativas relacionadas à “instrumentalização” das pessoas, organizações, movimentos sociais e comunidades em relação à compreensão e leitura crítica permanente da realidade social, política, econômica, cultural e simbólica em seus diferentes níveis: local, regional, nacional, em nível de América Latina e global, a partir do conhecimento e utilização das ferramentas de análise da realidade de cunho histórico, sociológico, antropológico e geográfico; questões territoriais.

Dimensão2: Institucional

Aqui entrariam todas as temáticas relativas ao projeto, à estrutura e identidade institucional da organização: missão, valores, visão, normas e procedimentos, documentos, etc.

Dimensão 3: Metodológica e Pedagógica

Esta dimensão abarcaria todas as temáticas relativas à ação pedagógica e metodológica: modelos de intervenção social; tendência do trabalho político-pedagógica; instrumentos, recursos e tecnologias para o trabalho pedagógico; os processos de ensino e aprendizagem nas comunidades, junto ao público alvo e nas organizações.

Dimensão 4: Gestão e Tecnologias de Comunicação e Informação

Esta dimensão incorporaria todas as questões temáticas referentes ao processo de gestão de pessoas, recursos e gestão do trabalho, bem como as questões relativas aos marcos legais e aos processos de PMAS (planejamento, monitoramento, avaliação e sistematização das ações e experiências) e a utilização das tecnologias de comunicação e informação. Brevemente, apresentaremos um post sobre o tema PMAS, bastante útil e que se constitui um desafio para muitas organizações do campo formal e não-formal.

Dimensão 5: Espiritualidade

Nesta dimensão estariam reunidas as temáticas e as atividades relativas à espiritualidade (pare além de pertencimento a uma religião): formação humana, afetiva e espiritual para fundamentar o compromisso sociopolítico; tratam-se de reflexões, vivências e aprofundamento da mística pessoal e coletiva dentro das organizações.

A definição ou priorização dessas dimensões depende do tipo de organização, de sua história, trajetória, missão, identidade e objetivos.

_________________________________________

QUE REFERÊNCIAS PODEM PRESIDIR OU ORIENTAR UMA PROPOSTA DE FORMAÇÃO NO CAMPO DAS ONGs?

Este post é o segundo artigo do tema sobre a formação no campo das ONGs, portanto ele dá continuidade às reflexões sobre esse assunto, iniciadas no post anterior.

Toda proposta de formação está assentado sobre um (ou mais) referencial ou concepção de formação. A pergunta é pertinente, pois, se a formação não é neutra, estaremos lidando com um instrumento político-ideológico que poderá reforçar (ou não) as relações (humanas, sociais, políticas, culturais, administrativas, religiosas) e o projeto institucional vigente da ONG ou projeto está sendo hegemônico na instituição.

Como a formação poderia contribuir, tanto do ponto de vista teórico como prático, com um projeto institucional democrático? Como irá contribuir para a construção e afirmação de gestores democráticos, críticos, criativos, inseridos nas comunidades e comprometidos com a transformação da sociedade, com a cidadania emancipatória? Como vai contribuir para a construção de um modelo institucional realmente circular, menos burocrático, participativo, com uma clara opção política pelos pobres, contra a pobreza e o sistema que a produz?

Essas questões, em grande medida, têm a ver com a concepção de formação que vai presidir, nortear a estratégia e as ações de formação a serem definidas pela instituição que está construindo o seu plano de formação.

Tenho observado que muitas demandas externas, vindas daquelas organizações que apoiam muitas ONGs no Brasil, também se assentam em determinadas concepções e práticas que acabam sendo apenas reproduzidas pelas institucões apoiadas e pelos seus parceiros, beneficiários dos recursos que conseguem captar, muitas vezes sem questionamentos relativos a sua natureza e caráter.
Gostaria de fazer referência a pelo menos seis concepções ou modos de ver a formação, que poderão orientar ou subsidiar a construção de qualquer projeto de formação. Farei referência de maneira resumida, depois, em outra oportunidade, podemos aprofundar, se for o desejo dos leitores e das leitoras desde Blog. Essas concepções têm influenciado a construção e implementação de processos formativos no campo da educação formal e não formal e no campo das ONGs. Essas teorias estão voltadas para pensar e organizar o processo de ensino e aprendizagem, atendendo os objetivos dos planos de formação.

Teoria do Capital Humano: essa teoria, desenvolvida nos anos 1960 pelos economistas neoclássicos Theodor Schultz e Gary Becker, a partir da concepção original de Adam Smith de que o investimento em educação e na formação de habilidades é um fator significativo para o crescimento econômico, tanto como o investimento em equipamentos e infraestrutura física. O capital humano: i) foca no agente individual, visto como sendo movido exclusivamente por interesse econômico próprio e operando em mercado livremente competitivos; ii) é quase universalmente definido em termos de habilidades e qualificações formais e sua medição baseia-se no tempo de duração do período escolar, geralmente excluindo modos mais informais de aprendizado; iii) seus produtos são medidos em termos da renda individual ou npiveis de produtividade.

Teoria do Capital Social: tem como teóricos James Coleman e Robert Putnam. O primeiro desenvolveu estudo nos de 1980 e 1982, concentrados na investigação dos resultados da escola pública e escolas católicas. Refinou o conceito e o ampliou, defendendo como “os recursos sócio-estruturais que constituem um ativo de capital para o indivíduo e facilitam certas ações de indivíduos que estão dentro dessas estrutura”; “o conjunto de recursos intrínsecos nas relações familiares e na organização social comunitária e que são úteis para o desenvolvimento cognitivo ou social de uma criança ou de um jovem”. Coleman fala em três formas de capital social: i) confiança e a real extensão das obrigações existentes em um ambiente social; ii) canais de trocas de informações e idéias; iii) normas e sanções constituem capital social onde elas encorajem os indivíduos a trabalharem por um bem comum, abandonando interesses próprios. Coleman buscou relacionar o capital social à teoria do capital humano, afirmando que este último se desenvolve mais quando há recursos no âmbito das relações e da organização social – capital social.

Já Robert Putnam centra sua concepção no âmbito político, defendendo o capital social como “trocas da vida social – redes, normas e confiança – que facilitam a ação e a cooperação na busca de objetivos comuns”. Segundo Putnam, redes e normas estão associados e têm conseqüências econômicas importantes para a comunidade. Ele acredita que as “redes de engajamento cívico” se sustentam nas normas e na confiança, sendo dessa forma que os indivíduos alcançam e valorizam a ação comunitária.

A maior parte dos programas de empreendedorismo tem sustentação nessas duas teorias. Daí todo um processo de formação focada na construção de habilidades e do uso estratégico dos recursos. Essas teorias são classificadas como funcionalistas, visto que trabalham para que o indivíduo se adapte a sociedade, a partir de relações de confiança e de normas estabelecidas (por quem?), muitas vezes negando os conflitos e as relações de poder e de classe.

Teoria das Inteligências Múltiplas

Foi criada por Howard Gardiner, pesquisador de Harvard, que pensou nessa teoria como uma alternativa para o conceito de inteligência, em oposição aquelas que fazem referencia ao QI (Quociente de Inteligência). Ele pensa a inteligência vinculada à construção de habilidades específicas para resolver problemas e criar produtos em ambientes culturais; segundo ele, a inteligência seria fruto de aspectos biológicos como de realidades sociais. Para este teórico, nós teríamos várias inteligências e as usamos de acordo com nossas necessidades e produtos que queremos gerar. Teríamos as seguintes inteligências: lingüística, lógico-matemática, espacial, musical, corporal, interpessoal, intrapessoal e naturalista. Muitas organizações que atuam com formação/educação constroem seus planos de formação visando trabalhar todas elas ou focam em algumas que consideram mais importantes, de onde esperariam a resolução de problemas ou a geração de produtos. É pragmática: pensa e restringe a pessoa à capacidade de resolver problemas e apresentar produtos. A pessoa seria uma máquina de inteligência.

Teoria dos Significados da Vida Humana

Criada pelo o americano Henry Phenix, que construiu a teoria partindo do pressuposto de que os seres humanos têm o poder para “experienciar” significados e a existência humana consiste em padrões de significado. Para este pensador, todos os significados seriam discriminações, organizações e interpretações de experiências. E que essas experiências se dariam dentro de alguns campos: simbólico, estético, pessoal, ético, empírico, integrador. Segundo essa perspectiva, formar uma pessoa completa seria desenvolver habilidades no uso da fala (como se comunica consigo mesma,com os outros e com a sociedade), do símbolo e gesto; estar bem informada; ser capaz de criar e apreciar objetos de sentido estético (apreciar o belo); ter um vida rica e disciplinada em relação a si mesma e a outras pessoas; ser capaz de tomar sabias decisões e de julgar o que é certo e ser possuidora de uma perspectiva íntegra.

Teoria Crítica

Foi criada pelos pensadores da chamada Escola de Frankfurt (muitos lembram desses nomes: Marcuse, Adorno, Horkheimer). Essa teoria parte da necessidade de se repensar e reconstruir radicalmente o significado da emancipação humana; refere-se à natureza de crítica autoconsciente e à necessidade de se desenvolver um discurso e uma prática de transformação social e de emancipação; tem compromisso de penetrar o mundo das aparências objetivas para expor as relações sociais ligadas a essas relações, que geralmente iludem; desenvolver nas pessoas e instituições uma capacidade de análise crítica, no sentido de desvendar a lógica das relações e processos sociais. Essa teoria visa habilitar as pessoas e organizações para que percebam a interconexão entre a vida econômica da sociedade, o desenvolvimento psíquico das pessoas, e as transformações no âmbito da cultura, incluindo nesta última o direito, a ética, a moda, a opinião pública, o esporte, as diversões, o estilo de vida, etc. A teoria crítica questiona de forma contundente a razão instrumental; o positivismo e se coloca favorável à transformação radical da sociedade.

Reflexão na Ação

Não é propriamente uma teoria, mas uma abordagem, um enfoque conceitual da formação. Desenvolvida por Donald Schon, esse enfoque concebe a formação como um processo dinâmico que se dá na prática baseada na reflexão na ação. Para Schon, o profissional é considerado como um “prático autônomo”, como um “artista” que reflete, toma decisões e que cria, durante a sua própria ação. Esse enfoque se contrapõe à visão que toma o profissional como técnico especialista, que aplica com rigor as regras próprias do conhecimento científico. Essa visão de Schon se associa Concepção Metodológica Dialética da Educação Popular, que é uma concepção entendida como um modo de articular filosofia de vida, prática política e visão sociológica, que busca interrelacionar pesquisa, pedagogia, comunicação, estratégias de mobilização, organização e cotidiano popular, considerando a dimensão simbólica das práticas.

Assim, essas seriam algumas referências teóricas que, de algum modo, fundamentam muitos projetos de formação desenvolvidos pelas ONGs ou instituições do chamado Terceiro Setor. O texto que segue busca oferecer algumas idéias e sugestões que contribuam para a discussão sobre a construção do planos de formação para as Organizações Não-governamentais (ONGs). Trata-se de alguns pressupostos e referências que podem ser levados em conta na discussão e elaboração de qualquer plano de formação. Não tem a pretensão de ser algo acabado, pois a realidade social não é estátiva e como tal exige uma proposta formativa aberta, dialógica e sempre em construção.

______________________________________

Formação no Campo das ONGs: alguns pressupostos e referências (I)

O texto que segue busca oferecer algumas idéias e sugestões que contribuam para a discussão sobre a construção do planos de formação para as Organizações Não-governamentais (ONGs). Trata-se de alguns pressupostos e referências que podem ser levados em conta na discussão e elaboração de qualquer plano de formação. Não tem a pretensão de ser algo acabado, pois a realidade social não é estátiva e como tal exige uma proposta formativa aberta, dialógica e sempre em construção.

O artigo demanda mais de um post. Por isso vou dividi-lo em duas partes. Nesta, trataremos de fazer uma rápida contextualização da questão da formação no contexto social das ONGs e do Terceiro Setor (TS). No segundo post, socializaremos alguns referenciais teóricos contemporâneos a partir dos quais se tem pensado e organizado alguns programas de formação. No terceiro, discorremos sobre algumas dimensões do processo de formação, que podem servir de referência para estruturar uma boa proposta de formação.

O contexto das ONGs e a questão da formação

Antes de pensarmos na proposta de formação é muito importante observarmos os contextos sociopolíticos, culturais, financeiros e administrativos vividos pelas ONGs e os movimentos em torno dos quais estão sendo pensados os processos de formação. Esse olhar pode nos ajudar a construir uma boa proposta de formação e definir sua intencionalidade.

Pelo que temos observado, as ONGs, de uma maneira geral, dado a importância e o destaque político que ganharam a partir dos anos 90 na sociedade, vêm fazendo significativos investimentos em formação, com ênfase nos aspectos técnicos e gerenciais. Acentuaram-se os cursos e os programas de formação voltados para preparar/capacitar/qualificar gestores e educadores sociais (como são chamados os profissionais do TS). Alguns temas são previsíveis: gestão de pessoas, gestão financeira e contábil, captação de recursos, planejamento e administração de estratégica, elaboração e gestão de projetos, marcos legais, dentre outros.

O chamado TS, onde estariam as ONGs, cresceu muito nos últimos anos. Há um dado bastante significativo que é revelador desse crescimento: no Brasil o TS movimenta cerca de 10,9 bilhões de reais (1% do PIB). Daí sua importância também do ponto de vista econômico e da gestão de recursos.

O que temos percebido é que há ONGs e ONGs. Há aquelas que estariam no campo progressista-popular, com dificuldade, mas vinculadas aos movimentos sociais e à perspectiva da transformação social, e aquelas no campo mais conservador ou reproduvista, que apresentam em seus discursos e práticas uma forte preocupação com a eficiência, os métodos, os instrumentos, os resultados, numa visão instrumental do social. Essas últimas visam se manter no mercado, visto que entendem que o social faz parte do mundo dos negócios. Tem plena consciência de que ajudam ao Estado, assumindo tarefas que deveriam ser suas. O povo (pobre) é visto como beneficiário, clientela ou público-alvo. A racionalidade instrumental é o carro-chefe do pensar e do agir dessas organizações.

Existiriam, pois, dois contextos e movimentos correspondentes neste cenário das ONGs ou do TS, como queiramos chamar: um, voltado para a afirmação de uma “cultura da emancipação”, cujo pensar e o agir extrapolam a luta pelos direitos e a luta contra a pobreza e as desigualdades,uma vez que seu projeto político é mais amplo; e a outra, que se move numa perspectiva de afirmação de uma “cultura instrumental”, onde as pessoas e os recursos são vistos sob a ótica economicista, da observação, da quantificação, do acúmulo de recursos.

É dentro deste cenário de ascensão e importância estratégica das ONGs que devemos pensar a formação, considerando que elas têm contribuído para a formação política da sociedade e para muitas conquistas sociais ligadas à luta cidadã e democrática (há muita gente que acha que elas contribuíram para a deformação da sociedade).

Pela sua importância e papel, a formação cumpre então uma função sociopolítica estratégica e determinante: o de favorecer processos de ensino e aprendizagem, capacitação e qualificação que orientarão e sustentarão (ou não) os discursos, projetos e ações dessas organizações e de seus projetos na sociedade. Portanto, a formação não é neutra, cumpre um papel político importante na construção e afirmação dos seres humanos, dos profissionais (dimensão ontológica, como diria Paulo Freire – do ser) e na instrumentalização de seu agir, através do qual constroem relações sociais, fazem intervenções, fazem ou reforçam escolhas e situações, que podem ter um caráter transformador ou mantenedor do status quo (individual e social) na sociedade

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Três dicas para se tornar um excelente professor  on-line! O ensino à distância (EaD) é uma escolha popular para muitos estudantes uni...