Política

A DIFERENÇA ENTRE PRÁXIS E ATIVIDADE

No trabalho social e educativo é comum as pessoas se referirem as suas atividades chamando-as de práxis. Qual a diferença entre práxis e atividade?

Este artigo, de forma muito pontual, pretende discutir a diferença entre práxis e atividade, tomando como referência o pensamento do filósofo Sánchez Vázquez.

Vázquez, em sua obra Filosofia da Práxis (2007), apresenta conceitualmente a diferença entre atividade e práxis, afirmando que “toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é práxis”. Explica logo que a atividade (em geral) é um conjunto de atos em virtude dos quais um sujeito ativo (agente) modifica uma matéria-prima dada. Portanto, a atividade, por sua generalidade, não especifica: o tipo de agente (físico, biológico ou humano); a natureza da matéria-prima sobre a qual atua (corpo, ser vivo, vivência psíquica, relação ou instituição social); a espécie de atos (físicos, psíquicos, sociais) que levam a certa transformação; seu resultado (o produto) se dá em diversos níveis (nova partícula, um conceito, um instrumento, uma obra artística ou um novo sistema social). Para o autor, só podemos falar em atividade se esta se referir a atos singulares que se articulam e estruturam, como elementos de um todo, ou de um processo total, que desemboca na modificação de matéria-prima. E também se esta se traduzir em um produto: o resultado dessa matéria transformada pelo agente. Vázquez, ainda caracterizando a atividade, refere-se a esta dizendo que ela é humana apenas quando se verifica que os atos dirigidos a um objeto para transformá-lo se iniciam com um resultado ideal, ou fim, e terminam com um resultado ou produto efetivo, real.

Segundo o autor, isso ocorre devido a intervenção da consciência, graças a qual, o resultado que o sujeito deseja existe duas vezes e em tempos distintos: como resultado ideal e como resultado real. Segundo essa compreensão, primeiro a pessoa idealiza o resultado como produto da consciência. O sujeito, portanto, age conforme o ideal formado e pensado em sua consciência, sua busca pelo real toma como ponto de partida o ideal formado em sua consciência. Vázquez, com base nessa compreensão, afirma categoricamente: “Desse modo, para que se possa falar de atividade humana é preciso que se formule nela um resultado ideal, ou fim a cumprir, como ponto de partida, e uma intenção de adequação, independentemente de como se plasme, definitivamente, o modelo ideal originário”. Segundo o autor, é esse fato que dá um caráter consciente a atividade humana. Confirma essa afirmação assegurando que “toda ação verdadEeiramente humana exige certa consciência de um fim, o qual se sujeita ao curso da própria história”.

O autor esclarece ainda que essa atividade de produção de um fim (ideal) como motor da sua ação não é produto apenas da consciência, é produto também do conhecimento, que se expressa na forma de conceitos, hipóteses, teorias ou leis mediante as quais o homem conhece e atua na realidade. É assim que ele fala em atividade cognoscitiva – através da qual o homem procura conhecer a realidade; e em atividade teleológica – onde o homem projeta em sua mente ou consciência uma realidade futura. Vázquez diz que ambas as atividades são obra da consciência e formam uma unidade indissolúvel. Ambas têm um caráter teórico, mas a teoria, por si só, não leva a uma transformação da realidade, pois a consciência não ultrapassaria seu próprio âmbito. Nesse caso, o autor conclui, tanto a atividade cognoscitiva como a atividade teleológica, apesar de serem atividades, “não são, de modo algum, atividade objetiva, real, isto é, “práxis” .

Concluímos então afirmando que, resgatar o sentido da práxis no fazer social, político e pedagógico, é remetermo-nos ao movimento de nos reconhecer implicados pelo que falamos e fazemos, bem como pelos resultados desse nosso fazer. A atividade que não incorpora essa perspectiva não é práxis, é apenas uma atividade. Como vimos, é nisto que reside a intencionalidade da práxis.


______________________________________________


COMO REFORMAR O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO?

Vivemos uma crise política e ética na sociedade brasileira, crise essa que se expressa na transfiguração do conceito e espaço do político, caracterizado pelo fim dos grandes projetos e das utopias transformadoras; rejeição aos fundamentos éticos e à justiça social; fortalecimento de uma visão individualista da política. A democracia e a política são vistas apenas como instrumentos, arranjos, na medida em que garantem a funcionalidade da sociedade e da administração pública. Nesse sentido, a democracia e a política, segundo essa compreensão, não passam de meros instrumentos para garantir essa funcionalidade. Assim, concluímos que a democracia abstrata das urnas não envolve uma igualdade política real (Cole, 1992).


O sistema representativo atual, em grande medida, tem servido apenas para conciliar o sufrágio universal e igualitário com a conservação de uma sociedade desigual, tem servido para domesticar nossa democracia (Macpherson, 1978). Vivemos uma época em que é patente e profundo o esgotamento do potencial de representatividade dos partidos políticos e de outras instituições da sociedade, reflexo da crise de legitimidade do Estado (neo) liberal-social que temos. Frente a essa situação, a democracia e a política poderão desempenhar dois papéis: integrarem–se a essa institucionalidade e fortalecer a crise de legitimidade do Estado (neo) liberal-social, ajustando-se à ordem até então por ele estabelecida, ou assumirem um papel de agentes transformadores, mediante a recusa a essa lógica.

Para atingirmos a segunda opção faz-se necessário uma reforma de nossos Sistema Político. O presente artigo propõe-se a apontar algumas idéias e sugestões de como operar essa reforma. Tomaremos como referência fundamental o documento “Construindo a Plataforma dos Movimentos Sociais para a Reforma do Sistema Político no Brasil”. A Plataforma vem sendo discutida desde 2004, ano em que foram organizados vários seminários regionais e estaduais, fomentando a discussão no Acre, Amapá, Pará, Tocantins, Rondônia, Roraima, Maranhão, Ceará, Pernambuco, Piauí, Sergipe, Alagoas, Bahia, Paraíba, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Na seqüência, em 2005, foi realizado em Recife o seminário nacional “Novas estratégias para ampliar a democracia e a participação”, reunindo mais de 60 participantes, representando diversas organizações/redes/foruns/movimentos e articulações de 21 estados. Em março de 2011, os Movimentos Sociais lançaram a Plataforma através de um projeto de lei de iniciativa popular, objeto de grande debate no momento atual.

Em função dos limites deste espaço, procuraremos apresentar e esclarecer as propostas de forma didática, facilitando o entendimento e a apropriação das mesmas pelos leitores e leitoras deste Blog.

O que entendemos por Reforma Política?

Do ponto de vista dos Movimentos Sociais, a Reforma Política é a mudança do próprio processo de decisão, isto é, da maneira de entender, organizar e exercer o poder no Brasil, considerando as dimensões legislativa, executiva, judiciária e dos meios de comunicação. Já do ponto de vista das elites brasileiras, a reforma não passa de alterações no processo eleitoral. Ela não tem interesse em mudar o modo de entender, organizar e exercer o poder no Brasil. Por isso, a discussão atual não mexe com a estrutura de poder que temos no país, poder que sempre teve seus fundamentos no clientelismo (prática baseada na troca de favores e no apadrinhamento), na corrupção, no nepotismo (prática de favorecimento e distribuição de empregos a parentes por parte de pessoas que exercem cargos públicos), no personalismo (culto às personalidades e desvalorização do debate político), dentre outras heranças políticas malditas.


Portanto, os Movimentos Sociais entendem a Reforma Política como:

O processo de reestruturação do poder que visa a radicalização da democracia para enfrentar as desigualdades e a exclusão, promover a diversidade e fomentar a participação cidadã.

Essa Reforma deve está assentada nos princípios de igualdade (equilíbrio de direitos e responsabilidades entre os cidadãos e as cidadãs, respeitando a diversidade), a diversidade (de gênero, de gerações, raça/cor, etnia, orientação sexual, pessoa com deficiência, entre outros), justiça, liberdade, participação, transparência (acesso universal às informações por parte da população) e de controle social (monitoramento e fiscalização do Estado por parte da sociedade).

O que entendemos por Democracia?


A democracia, na visão dos Movimentos Sociais, não se restringe ao voto, como é comum na sociedade brasileira. A democracia é muito mais que votar e ser votado. Democracia é o processo de construção da vida social, ou seja, de construção e transformação das relações entre homens e mulheres, crianças e adultos, jovens e idosos; da vida privada e da esfera pública – relações de poder no âmbito do Estado e da Sociedade Civil.

O que fazer para reformar o poder no Brasil?

Primeira Medida: Fortalecer a democracia direta

Esta medida visa radicalizar a participação direta da sociedade em todas as decisões que lhes dizem respeito. Portanto, a Reforma Politica deve regulamentar e ampliar os mecanismos de democracia direta previstos na Constituição Federal: plebiscito, referendos e iniciativa popular. A partir dessa medida, os Estados e os Municípios seriam obrigados a envolver a população na definição e aprovação de determinados projetos de leis, de modo a ouvir a população sobre questões importantes para a vida social.

Além disso, para fortalecer ainda mais a participação direta da sociedade, seria criada uma política de financiamento público e de controle das doações privadas para as campanhas de opinião nos processos de referendo e plebiscito, evitando-se que empresas financiem determinadas campanhas, definindo seus resultados, como aconteceu na campanha do desarmamento, onde as indústrias das armas financiaram o “não desarmamento”.

Da mesma forma, a população teria o direito de revogar mandatos eletivos, quando estes não forem exercidos de acordo com os interesses da maioria da população.

Caberia ainda nesta medida, a construção de uma política pública de educação para a cidadania, com ênfase no acesso à informação e no uso dos instrumentos necessários ao exercício da participação efetiva e mais qualificada da população.

Segunda Medida: Fortalecer a democracia participativa

Em que propostas essa medida implicaria? Implicaria a participação da população na definição das prioridades de pauta do Congresso Nacional e demais Câmaras legislativas; a criação de mecanismos de participação, deliberação e controle social das políticas econômicas e de desenvolvimento, do ciclo orçamentário da União, Estados e Municípios;
a garantia de acesso universal às informações orçamentárias; garantia de continuidade de planos e programas das políticas públicas; criação de mecanismos de diálogo e de interlocução dos diferentes espaços de participação e controle social.

Todas essas propostas visam superar a atual fragmentação e paralelismo da estrutura da participação que temos hoje; enfrentar a fragmentação e a falta de diálogo entre os diversos mecanismos de participação, em particular entre os conselhos e as conferências. O que observamos é que estes mecanismos não evidenciam e tensionam o sistema político vigente, portanto, não mexem na estrutura de poder que predomina, controlado pelas elites e políticos profissionais. Com essas propostas, queremos recuperar o papel da mobilização social e da ação coletiva na construção da democracia.


Terceira Medida: Aprimorar a democracia representativa: o sistema eleitoral e os partidos políticos

A democracia brasileira supõe o sistema representativo, formado pelo (a) vereador (a), deputado (a) e senador (a), no âmbito do poder legislativo; pelo (a) prefeito (a), governador (a) e presidente (a). Essa representação é organizada pelo sistema eleitoral e partidário. Essa medida visa aprimorar esse sistema, sugerindo mudanças importantes elativas à vida pública, partidária, ao processo eleitoral/mandados e à justiça eleitoral.

No que se refere à vida pública, medida prevê o fim das votações secretas nos legislativos, da imunidade parlamentar, do foro privilegiado (exceto nos casos em que a apuração refere-se ao estrito exercício do mandato ou do cargo), do nepotismo, do sigilo patrimonial e fiscal para candidatos/as, representantes e ocupantes de altos cargos do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário e proibição de contratos de prestação de serviços entre o Estado e empresas relacionadas direta ou indiretamente a detentores de mandatos públicos. A medida defende também a exigência de concursos públicos para preenchimento de cargos públicos nos três poderes e concurso publico para ministros do Tribunais de Contas.

No que diz respeito à vida partidária, a medida defende: a destinação do tempo de propaganda partidária para ações afirmativas, ou seja, para promoção da participação política das mulheres, afro-descendentes, indígenas, homossexuais, idosos e pessoas com deficiência; o uso de recursos do fundo partidário para a educação política e ações afirmativas voltadas para as mulheres afrodescendentes, indígenas, homossexuais, idosos e pessoas com deficiência (organizados/as nos partidos); para a implantação da Fidelidade Partidária; fim da cláusula de barreira.

Para o processo eleitoral e mandatos, a medida defende o financiamento público exclusivo de campanhas, combatendo a privatização e mercantilização da política, a corrupção eleitoral, o poder dos grupos econômicos nos processos eleitorais e favorecer a participação política de segmentos socialmente excluídos; voto de legenda em listas partidárias preordenadas com alternância de sexo, quebrando o personalismo e a competição interna em cada partido; diretórios partidários devidamente constituídos para lançar candidaturas; possibilidade de criação de federações partidárias para substituir as coligações partidárias, tanto nas eleições majoritárias como nas proporcionais, para cargos federais, estaduais e municipais.

Essa medida prevê ainda uma reestruturação dos processos de filiação partidária e organização dos cargos partidários, bem como o funcionamento dos mandatos, estabelecendo limites e proibições, e a organização dos debates eleitorais.

A medida defende também o fim da publicação de pesquisas às vésperas do pleito; limites para as gravações de propaganda de radio e TV, que só devem ser permitidas em estúdios; proibição de contratação de cabos eleitorais nas campanhas; estabelecimento de cotas específicas para representantes indígenas nos legislativos federal, estaduais e municipais, com estabelecimento de regras próprias adequadas à realidade sociocultural dos povos indígenas.

Sobre a justiça eleitoral, a medida apresenta proposta que visam democratizar o poder na Justiça Eleitoral, incluindo reforma da Justiça Eleitoral, através da criação, com participação da sociedade civil, do Conselho Nacional de regulamentação do processo
eleitoral, tirando esse poder do TSE; criação do órgão executivo eleitoral independente; criação de órgão fiscalizador dos processos eleitorais composto pelos partidos e organizações da sociedade civil, com dotação orçamentária própria; manutenção do TSE com a função judiciária e, preferencialmente, que seus juízes não sejam os mesmos de instâncias superiores, evitando que recursos contra suas decisões voltem a cair nas suas próprias mãos ou nas mãos de seus pares.

Quarta Medida: Democratizar a informação e a comunicação

A Reforma Política proposta pelos Movimentos Sociais entende que a informação é poder e a qualidade da informação ou o nível de informação de um povo influencia direta
e necessariamente a qualidade do processo democrático. Não é possível falar em democracia plena com um cenário de concentração dos meios de comunicação como o brasileiro. Hoje no país, nove famílias controlam os principais jornais, revistas e emissoras de rádio e TV. Nove têm liberdade e 180 milhões de pessoas têm que aceitar o que lhes é imposto por poucos.

Por isso, a Reforma propõe uma série de mudanças nos meios de produção e difusão da comunicação no Brasil, entre as quais destacamos: criação do Sistema Público de Comunicação, como prevê o Art. 223 da Constituição Federal de 1988, complementarmente aos sistemas privado e estatal; criação de Centrais Públicas de Comunicação, possibilitando o exercício da produção e distribuição de conteúdos em diversas linguagens, seja para Rádio, TVs e outros; controle social do Sistema de Comunicação, visando democratizar e dar transparência à formulação e ao acompanhamento das medidas de restrição (controle de propriedade) e de promoção (sistema público e estímulo à diversidade). O controle público não se dá somente sobre os veículos, mas sobre os processos de formulação, deliberação e acompanhamento das políticas públicas da área. Nesse sentido, a Reforma define que o controle social dos meios e do processo de produção da informação e da comunicação priorize: o controle de conteúdo, a criação de Conselhos de Comunicação Social; realização regular de Conferências de Comunicação, para garantir o processo de formulação, deliberação e acompanhamento das políticas públicas da área.

A medida defende com igual urgência o fim do monopólio e oligopólio nas comunicações, afirmando o que diz o § 5º do Artigo 220 da Constituição Federal, que estabelece que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. Daí, a medida incluir a defesa da criação de dispositivo legal que impeça concentração de propriedade vertical de veículos, ou seja, que um mesmo grupo possa controlar emissoras de rádio e televisão além de jornais e/ou revistas, empresa de TV a cabo e internet no mesmo mercado. Na mesma linha, defende a proibição de que parlamentares sejam concessionários de emissoras de rádio e TV, como prevê a Constituição Federal em seu artigo 54.

Quinta Medida: Democratizar o poder judiciário e abri-lo à transparência

A Reforma Política proposta pelos Movimentos Sociais compreende que o Judiciário é o poder ao qual a população tem mais dificuldades de acessar. Os (as) profissionais desse poder são concursados/as ou ocupam cargos de confiança. O Judiciário não está sujeito a nenhum tipo de controle social ou participação da população. Portanto, a Reforma defende a construção de mecanismos de participação e controle social sobre o Poder Judiciário para que cumpra o papel regulador das relações sociais, econômicas e políticas e não o que muitas vezes faz, comportando-se como um poder submisso aos interesses das classes dominantes e dos que estão de plantão no poder, sujeito a influências políticas, corrupção, nepotismo, venda de sentenças, processo decididos por juizes/as parentes do demandante beneficiado, frágil perante as pressões das elites locais. As proposta defendida incluem: instituição do Concurso Público como forma exclusiva de entrada nas carreiras do Poder Judiciário; criação das Defensorias Públicas em todos os municípios; criação das Corregedorias Populares com participação da sociedade civil para avaliar e fiscalizar a ação do poder judiciário; demissão de juízes/as e promotores/as quando comprovado caso de corrupção, venda de sentenças, tráfico de influencias ou vínculo com grupos criminosos; fim do sigilo patrimonial e fiscal para candidatos/as, representantes e ocupantes de altos cargos do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário; criação e/ou ampliação do sistemas de informação do Judiciário, facilitando o controle social.

Finalizamos este post pedindo apoio a todos os leitores e leitoras na divulgação desta Plataforma, a fim de avançarmos na construção e radicalização da democracia brasileira. Podemos promover debates e discussões em escolas, associações e espaços de formação. Acesse os links e participe, a democracia agradece!

Link de acesso ao documento: Plataforma dos Movimentos Sociais para a Reforma do Sistema Político no Brasil.

Link para assinar o projeto de lei: Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Reforma Política

__________________________

AS ESQUERDAS NO BRASIL: VAZIO UTÓPICO E CAPITALISMO LIVRE?

Algumas semanas atrás, li uma carta do professor Boaventura de Sousa Santos direcionada às esquerdas do mundo, as quais define como “um conjunto de posições políticas que partilham o ideal de que os humanos têm todos o mesmo valor, e são o valor mais alto”. Nesse documento, o sociólogo português fala dos frutos (sociais, políticos e econômicos) colhidos no século XX como resultados históricos da ação das esquerdas, pois, graças a elas, “o mundo tornou-se mais livre e mais igual”. Segundo o professor, sem esses resultados a democracia no mundo seria outra, com certeza mais ruim.


Apesar de destacar a importância histórica das esquerdas, Boaventura de Sousa Santos defende que, atualmente, o capitalismo encontra-se livre delas e voltou a mostrar sua vocação anti-social. Conforme o autor português, estaríamos vivendo um tempo em que o capitalismo encontra espaço aberto para continuar investindo na barbárie.

Ora, se o capitalismo encontra-se livre para reinar, é porque as esquerdas ou estão ausentes ou estão amordaçadas. Parece que elas vivem as duas situações. Mas, por que nos encontramos nessa situação? Por que temos que gritar, clamar e implorar para que as esquerdas acordem ou tirem a mordaça da boca e se insurjam contra a barbárie?

Não tenho a pretensão de responder a questão em sua complexidade, mas de emitir uma opinião.

Creio que esse sono (ou ópio?) profundo ou a ausência das esquerdas tem a ver com o vazio utópico que estamos vivendo no Brasil contemporâneo, vazio que, como nos mostram alguns estudiosos (as) comprometidos (as) com a transformação social, diz respeito ao fato de que nunca nos tornamos verdadeiramente nação, ou seja, historicamente, sempre fomos impedidos de nos constituir como nação, temos sido golpeados neste desejo. Não conseguimos completar nossa modernidade e já estamos sofrendo os impactos de um modelo de desenvolvimento pós-moderno.

O Brasil, como todo o planeta, vem sofrendo as conseqüências do vazio utópico e da hegemonia da sociedade de mercado globalizado. O processo de destruição das utopias se reflete no Brasil através da sedimentação de uma racionalidade instrumental fundamentada na lógica de mercado e na adesão das lideranças econômicas e dos grupos políticos a expansão da internacionalização financeira (Uriban Xavier, 2006). A visualização desse processo pode ser observada em vários fenômenos, vejamos alguns:

Sucateamento e precarização dos serviços públicos estatais como forma de ampliação do mercado de serviços;
Destituição da solidariedade orgânica (Durkheim), que promovia a responsabilidade das instituições (Estado e Mercado) pela proteção social (agora, cada indivíduo tem que se virar para construir seu próprio destino);
Rejeição da ética responsável como fundamento e cuidado com a vida;
Desterritorialização e impessoalidade nas relações sociais;
A racionalidade instrumental colonizando as relações políticas (tudo pode pelo, através e para o dinheiro);
A política é normatizada pela lógica do mercado: compra de votos, cargos, informações, projetos de leis, partidos e poder; não importa se o político não tem qualidade, vínculo e nem compromisso, tudo pode e é possível;
Superação da pobreza com a manutenção de um modelo de desenvolvimento que a produz, reproduz e que destrói o meio ambiente.
Sabemos que nos anos 90, do século XX, o Brasil, junto com vários outros países da América Latina, é submetido a um conjunto de transformações, no âmbito da “mundialização do capital”, que se materializaram num ciclo de ajustes, via “Consenso de Washington”, cujos impactos alteraram profundamente a vida social, política e econômica do país; provocaram também mudanças no modelo de Estado, que passa a se ajustar à nova ordem. É assim que o Estado brasileiro assume a nova lógica do capital, valorizando e viabilizando seus desejos e projetos (privatização do patrimônio público, destituição dos direitos, entrega do patrimônio natural à iniciativa privada, desemprego estrutural, destruição do meio ambiente, dentre outros projetos e ações).

Muitos e muitas sonhavam que, com a vitória do PT e das forças progressistas e democráticas a ele aliadas, o Brasil rumaria noutra lógica, efetivando as inversões estruturais necessárias no modo de governar, e aprofundaria a cidadania que vinha sendo construída pelos movimentos sociais e pela sociedade organizada, ancorada na participação popular e democrática, na luta pela efetivação dos direitos e na construção de um novo projeto de Brasil.

Nesse sentido, vale lembrar uma análise-síntese feita pelo cientista político José Luis Fiori (1997), que afirma que “o Estado mudou de cara, mantendo a mesma alma”. Assim, podemos dizer que o Estado, desde que passou a ser controlado pelo PT e seus aliados, vem imprimindo mudanças, mas são “mudanças na permanência”, porque não alteraram e não alteram o modelo promotor de exclusão, desigualdade e pobreza. Em primeiro lugar, atende aos interesses e as exigências das novas formas de valorização do capital. Depois, oferece políticas e programas compensatórios para a população.

Vivemos, portanto, um tempo de transfiguração da política, da ética e das relações sociais. Vivemos um tempo de vazio utópico, de esquerdas amordaçadas e alheias à transformação social.

Mas, podemos dizer com esperança, que vivemos um tempo de novas oportunidades e possibilidades: de refundação da vida; de retomada da cultura política forjada na noção de cidadania como luta e conquista; de resgate e fortalecimento da criatividade cultural e da mística popular; de instituição de um novo dissenso (Rancière), capaz de devolver a palavra e o espaço público ao excluído e a excluída (moradores pobres, famílias sem teto, trabalhadores sem terra, mulheres, negros, índios, minorias discriminadas), desprivando e desprivatizando a política, capaz de insurgir-se contra a cultura política dominante.

Leia também os artigos relacionados:

- Pobreza política;
- As diversas faces da política;
- Política: a arte da rapinagem?

_________________________________________________


POBREZA POLÍTICA

Certa vez, li uma entrevista do professor Valeriano Mendes Ferreira, da Universidade Estadual de Campinas, ao Instituto Humanas Unisinos (IHU), analisando a questão do combate à pobreza no Brasil nos últimos onze anos. O professor respondeu questões relativas ao impacto dos programas como SUAS (Sistema Único de Assistência Social), Bolsa Família e mais recentemente o Brasil Sem Miséria; comentou sobre o número de pessoas que vive na extrema pobreza, que é de 16 milhões, onde 46% se concentra nas áreas rurais e 54% nas áreas urbanas; falou sobre as estratégias para reduzir esse número de pobres do país, sobre os gastos do governo com as políticas sociais, que chegam em torno de pouco mais de 20% do Produto Interno Bruto (PIB), dentre outros pontos abordados.

Um aspecto das questões abordadas pelo professor Valério Mendes me chamou a atenção, o que me instigou a compartilhar aqui um ponto de vista, que vai na direção de problematizar essa questão da pobreza, sem desconhecer a importância das iniciativas e da intencionalidade política explicitada pelo nosso governo de enfrentar a pobreza. Trata-se do modo como se aborda e se discute a pobreza hoje, restringindo-a praticamente à dimensão da carência material, enfim ao acesso a bens materiais; da maneira como se concebe a pobreza e a exclusão social de mais de 39,5 milhões de brasileiros, segundo dados do PNAD (Programa das Nações Unidades para o Desenvolvimento)

De uns tempos para cá, a pobreza passou a ser tratada como uma questão de gestão e não mais como uma questão de injustiça e de desigualdade social, fruto de uma estrutura de poder que não tem interesse em dividir e distribuir a riqueza produzida. Tanto é que, fala-se em reduzir a pobreza, chegando-se ao índice dos países ricos e desenvolvidos, mas não se toca na questão da desigualdade, que, diga-se de passagem, continua predominando no país. Fala-se então da pobreza de maneira pobre e da exclusão com um certo charme, o que destaca o Brasil como um país que vai acabar com a pobreza.

O caráter pobre da nossa visão de pobreza e o charme da exclusão social residem no fato de que a pobreza não é mais considerada uma questão de injustiça social e de desigualdade. Praticamente, o discurso sobre a pobreza ignora o seu cerne: o fundo político da marginalização, da extrema desigualdade que assola nosso país. Há uma descontextualização política da pobreza, desvinculando-a da questão da desigualdade. Talvez seja por isso que os programas sociais voltadas para o combate à pobreza nunca vão, de fato, erradicá-la, porque não chegam a atingir o cerne da questão: as desigualdades, a distribuição equitativa dos bens econômicos, sociais, culturais, simbólicos, dentre outros.

Mesmo havendo, como estamos a acompanhar, iniciativas voltadas para o enfrentamento da pobreza (prefiro falar em enfrentamento a falar em erradicar a pobreza numa sociedade predominantemente capitalista), elas não fazem “cócegas” na forma de organização do poder e de controle dos recursos naturais e dos meios de produção em nossa sociedade, ainda nas mãos de uma elite que reproduz a forma de colonização e de apropriação de nossa riqueza como em tempos remotos. Portanto, em última análise, as medidas contra a pobreza são de uma pobreza política fantástica. Lembro aqui a definição de pobreza política apresentada pelo professor Pedro Demo, que a compreende como a dificuldade histórica de o pobre superar a condição de objeto manipulado, para atingir a de sujeito consciente e organizado em torno de seus interesses.

Nossa pobre visão da pobreza (ou pobreza política, na perspectiva de Pedro Demo ), no fundo, está relacionada à cultura política que construiu nossa visão dos direitos sociais que, destaque-se aqui, estão sendo cassados pelos que nos governam e pelos que fazem as leis de nosso país (há um projeto legislativo que visa reduzir direitos sociais). Herdamos uma confusão que também está presente na nossa relação com a pobreza: confundimos direito e ajuda ou direito e proteção aos pobres; herdamos uma visão do direito como ajuda, portanto como gestão filantrópica da pobreza.

Finalizando essa reflexão, pois sei que não há condições neste espaço para analisar a questão de maneira mais aprofundada, reconheço que o Brasil, em relação à décadas passadas, vem avançando, pelo menos no sentido de pautar a questão da pobreza como uma questão fundamental para o desenvolvimento do país e construir formas de seu enfrentamento, mas destaco que há um desafio que precisa ser enfrentado: o de politizar a pobreza, para que o debate e as iniciativas em torno do seu enfrentamento instiguem a sociedade a discutir a urgência de pensar um projeto para o Brasil que realmente enfrente um dos principais problemas de nosso tempo: a pobreza política, que pode se tornar no grande obstáculo cultural do real enfrentamento e superação da pobreza socioeconômica.

Leia mais sobre o tema:


________________________________________

COMO ANALISAR CONJUNTURA?

Este artigo é direcionado especialmente para as pessoas que têm algum tipo de atuação no social e deseja apropriar-se de um método simples de análise da conjuntura sociopolítica e econômica – conjunto de fatos, situações, acontecimentos, liderado ou conduzido hegemonicamente por uma pessoa, grupo, instituição, governo, etc., chamado aqui de ator, porque desempenha um determinado papel, seja ele social, político, econômico, religioso, cultural.

Eu usei esse método várias vezes no trabalho com grupos, instituições, movimentos. Você pode usá-lo em suas atividades sociais ou comunitárias, sempre que precisar discutir a realidade social e política da comunidade, município, estado ou do país. Eu aprendi esse método com Herbert de Souza – o Betinho, já falecido, grande sociólogo e animador do Movimento “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida”.

Sei que vivemos num tempo em que pouca gente e poucas organizações da sociedade civil analisam a conjuntura. Parece que há um certo desinteresse para a análise de conjuntura. Geralmente, faz análise de conjuntura quem, de alguma forma, faz incidência sóciopolítica, ou seja, desenvolve uma atuação no campo social, político e comunitário, ação essa que precisa considerar as diferentes variáveis que podem interferir positiva ou negativamente nos objetivos de seu trabalho. Não só para isso, faz-se análise de conjuntura para detectar O jogo de forças na sociedade, identificar a relação entre essas forças e as possibilidade de fazer ecoar os projetos, intenções que se deseja, inclusive identificar possibilidades para um determinado projeto.

A gente não sabe, mas as forças que dominam nossa sociedade utilizam mecanismos poderosos de análise da conjuntura para obter campo aberto para suas intervenções, manipulando pessoas,notícias, grupos e instituições e assim atingir seus objetivos. E hoje, para quem não sabe, esses mecanismos são cada vez mais sutis. O filósofo italiano Felix Guattari fala em “modelação dos indivíduos”, defendendo que os setores dominantes da sociedade procuram introjetar valores, hábitos, crenças e desejos serializados. As pessoas são trabalhadas de forma individuada, constituindo-se em meros “produtos de fábrica”, seduzidos pelas imagens da mídia, desejantes das mesmas conquistas de seus pares; e de forma singular, em que o sistema favorece aos indivíduos a criação de modos próprios de relacionar-se com a vida e consigo mesmo, sem deixá-los, porém, fugir dos modelos identitários.

Pois é, para um projeto social, político, cultural, etc., tornar-se importante na sociedade, para uma comunidade, cidade, estado ou país, é necessário construir permanentemente uma visão crítica da realidade, avaliando sempre as variáveis em jogo, para também identificar as possibilidades desses projetos ganharem adesão social junto ao público, junto à comunidade ou junto à sociedade.

Nesse sentido, é importante não ser ingênuo, a sociedade é movida por interesses e para garanti-los os grupos e instituições utilizam mecanismos de controle e manipulação para convencer as pessoas das verdades que esses grupos e instituições desejam que acreditem e defendam.

Portanto, uma análise de conjuntura tem que atender a pelo menos três exigências:

1) ser um olhar, uma leitura de raiz, ou seja, ir a fundo nas questões, atentando-se para o que está por trás dos fatos e acontecimentos; 2) de conjunto, isto é, buscar entender as coisas em sua totalidade, articulando o micro com o macro, o geral e o específico, o essencial e acessório, etc.; 3) rigorosa, no sentido de que não pode ser uma leitura ingênua, superficial, sem imprimir a esse processo a reflexão crítica, a busca pelo que está muitas vezes invisível aos olhos, pois há aspectos da realidade que estão no campo do intangível, do não palpável. O analista da conjuntura tem que ser também um artista do invisível.

Vamos então ao que interessa: como se faz uma análise de conjuntura?

Passo 1: Levantar os elementos da conjuntura segundo as categorias abaixo

Numa leitura da conjuntura, devemos utilizar alguma categorias, sendo as mais importantes as seguintes:

a) Acontecimentos: fatos relevantes, com repercussão na comunidade, na população de um município, estado ou país. Fato é um coisa corriqueira, banal, “normal”. O acontecimento, ao contrário, mexe com a dinâmica local, estadual, nacional e mundial; são situações impactantes, chamam-nos atenção pelo modo como impactam a sociedade, produzindo mobilização, retração, desconfiança, medo, ira, insegurança, etc.;
b) Atores e sua organização: todo acontecimento tem por trás um protagonista, que tem uma determinada força de organização, cumpre um determinado papel político na sociedade. Identificá-los, saber como estão organizados, quais as suas forças, o que falam e como atuam é fundamental na análise de uma conjuntura. Esses atores podem ser pessoas (líderes), grupos, setores e até classes sociais;
c) Cenários: os acontecimentos ocorrem em determinados cenários; atentar para eles é também fundamental. Pode ser que, em determinado cenário, nossas possibilidades de ação sejam boas, noutro, porém, podem ser ruins;
d) Relação de forças: as classes e grupos, setores de uma sociedade estão sempre e atuam numa relação de forças. Verificar e ter uma idéia dessa força também é importante na análise de conjuntura; da mesma forma, saber como se expressa essa força é estratégico para uma análise que pretende discutir como interferir na conjuntura;
e) Estratégias: é fundamental identificar as estratégias utilizadas por cada uma dos atores na relação umas com as outras. Elas podem ser de cunho político, econômico, cultural, ideológico, etc.; devemos perceber o alcance e os limites dessas estratégias para poder nos contrapormos a elas.

Passo 2: Análise das informações

Este passo é o momento da análise propriamente dita. Ou seja, devemos fazer uma leitura das informações, procurando cruzar essas informações de modo a identificar os principais desafios e como enfrentá-los. Devemos tomar cada ator, cada força separadamente para poder entender seu movimento e interesses na sociedade; entender porque agem de um determinado modo e não de outro; porque utilizam determinada estratégia e não outra, e assim obter uma visão crítica da relação de forças. Podemos situar esses atores/forças conforme a relação de forças entre eles. É assim que começamos a entender determinados discursos e práticas sociais.

Pass 3: Conjuntura e Estrutura

É igualmente necessário e importante relacionar os aspectos da conjuntura com a estrutura, ou seja, com aqueles elementos da realidade que são mais permanente, que não mudam facilmente; esses elementos são a estrutura social, econômica, política e cultural de uma sociedade, de uma comunidade. Mudanças na estrutura demandam ou exigem ações revolucionárias ou ações capazes de mexer com a estrutura de poder estabelecida.

Passo 4: Identificar os desafios para uma ação na conjuntura

Este momento é de suma importância, pois aponta para uma ação consciente, crítica e efetiva na realidade, na cojuntura de acordo com os interesses de quem está fazendo a análise de conjuntura.

Assim, a análise deve localizar os desafios que precisam ser enfrentados a partir das descobertas; é importante perceber em que esfera estão esses desafios, pois,dependendo da esfera, podemos avaliar se nosso poder de intervenção é pequeno, médio ou grande, definindo a melhor estratégia de intervenção.

Passo 5: Planejar a ação no social

Após a análise, o grupo deve planejar sua ação, considerando todos os elementos da conjuntura. É claro que, dependendo dos interesses de quem está analisando a realidade, determinados elementos vão ser mais importantes que outros. Mas, a parte do planejamento pode ser tema para outro artigo.

Veja este meu artigo complementar a este post: clique aqui .

________________________________________________

AS DIVERSAS FACES DA POLÍTICA

A preocupação com o político tornou-se um imperativo na nossa sociedade. Esse fato nos lembra uma pergunta, levantada por Hanna Arendt, filósofa alemã, que morreu nos anos 70 (século XX), numa de suas obras, por sinal muito atual para os nossos tempos: “Tem a política algum sentido?”. Ela é atual porque nas últimas duas décadas, período em que no Brasil passamos por profundas transformações advindas das políticas neoliberais, cujas conseqüências alteraram o modo de conceber a política e de atuar no espaço do político. Essas transformações mexeram nas representações que tínhamos da política e mudaram o papel do Estado (suas instituições) e da Sociedade Civil (e suas instituições). O resultado mais concreto dessas transformações é uma profunda e crescente apatia e aversão à política e suas instituições, principalmente os partidos políticos.

Esse período de ascensão e fortalecimento das políticas neoliberais, coincide com a luta dos movimentos e organizações sociais pela redemocratização do Brasil, iniciada nos anos 80 (século XX) e visava ampliar a democracia, aprofundá-la e radicalizá-la para muito além do sistema político, pretendia estendê-la para as relações sociais no seu conjunto, portanto, tratava-se de um novo projeto societário. O marco formal de todo esse processo foi a Constituição de 1988, que assegurou vários elementos deste projeto.

Neste contexto histórico, duas maneiras de entender e fazer política foram ficando claras: uma, mais democratizante e participativa, que buscava construir, pela transformação da cultura, pela mobilização social e a inserção ativa e consciente dos sujeitos coletivos no processo social, uma nova sociabilidade, uma nova nação (soberania); a outra, que reduz o papel do Estado e estabelece uma nova relação com a sociedade, pautada no legalismo, no individualismo e no institucionalismo do direito, formalmente concebido e operado. Na primeira, a cidadania tem o sentido de um projeto para uma nova sociabilidade, um formato mais igualitário das relações sociais, inclusive novas regras para viver em sociedade, para a negociação de conflitos; um novo sentido de ordem pública e de responsabilidade pública. A segunda, a cidadania é concebida como participação formal, ligada ao legalismo do direito, assegurado na medida em que o indivíduo constrói competência e capacidade de sucesso para conquistá-lo.

Como observamos, neste contexto histórico a política vai assumindo diferentes concepções e apresentando diferentes faces, formas, conteúdos e ações. Essas questões são objetos de reflexão no presente artigo, cujo objetivo é oferecer uma compreensão crítica sobre a caminhada da POLÍTICA e da PARTICIPAÇÃO CIDADÃ no Brasil, tendo em vista o desafio instigante e atual de responder a pergunta: “tem a política algum sentido?”.

Os sentidos da Política

Para refletirmos sobre essa questão, vamos resgatar, de maneira resumida, as idéias de alguns pensadores e filósofos que, em diferentes épocas, procuraram responder aos desafios da organização social e econômica das cidades. Muitas dessas idéias serviram como referência para a estruturação das sociedades modernas, pois apresentaram modelos de como as sociedades deviam ser organizadas, gerenciadas e como deviam funcionar.

Aristóteles (384-322 a.C), em sua obra “Política”, afirma:

Em todas as artes e ciências o fim é um bem, e o maior dos bens e bem em mais alto grau se acha principalmente na ciência todo-poderosa; esta ciência é a política, e o bem em política é a justiça, ou seja, o interesse comum; todos os homens pensam, por isso, que a justiça é uma espécie de igualdade, e até certo ponto eles concordam de um modo geral com as distinções de ordem filosófica estabelecidas por nós a propósito dos princípios éticos
.

Para este filósofo a política é a ciência da felicidade humana e do bem comum. E para ele, a felicidade consiste num modo como a pessoa vive onde ela habita, nos costumes e nas instituições da comunidade da qual faz parte. O objetivo da política é descobrir, primeiro, a maneira de viver que leva à felicidade humana, ou seja, as condições de vida das pessoas. Por exemplo: descobrir o que as pessoas precisam e devem fazer para se sentirem mais felizes. Depois, a forma de governo e as instituições sociais, capazes de assegurar essa felicidade. Os governos e as instituições deveriam existir para garantir e assegurar a felicidade humana, o bem comum na cidade. Quando não cumprem essa função ou objetivo, defendendo interesses privados ou de uma classe só, essas instituições são consideradas depravadas, desvirtuadas ou pervertidas.

Vejamos alguns pensamentos da filósofa alemã Hanna Arendt (1906-1975):

Política trata da convivência entre diferentes. A política baseia-se na pluralidade dos homens. O objetivo da política é a garantia da vida no sentido mais amplo. É na esfera política e pública que realizamos nossa condição humana. O campo da política é o do diálogo no plural, que surge no espaço da palavra e da ação – o mundo público – cuja existência permite o aparecimento da liberdade. O poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido. Quando dizemos que alguém está 'no poder', na realidade nos referimos ao fato de que ele foi empossado por um certo número de pessoas para agir em seu nome
.

As idéias de Arendt apontam para o entendimento de que a política baseia-se na relação interpessoal e na convivência, convivência esta que é diversa, pois se dá entre pessoas e grupos que são diferentes; portanto, a política é relação interpessoal, é comunicação e convivência na pluralidade, na diferença. É valorização do outro ou da outra na relação. A política é conversa, interação e diálogo entre os diferentes. A palavra e a ação é que fazem acontecer a política. Assim, podemos dizer que a política, segundo esta filósofa, é comunicação e ação. Quando um grupo resolve discutir ou tomar uma decisão e para isto leva em conta as opiniões e os diferentes interesses das pessoas da comunidade, dialogando sobre aquilo que é comum, que beneficia a todos, de modo que a comunidade alcance o seu objetivo e obtenha os resultados esperados, este grupo está fazendo a política da pluralidade, da comunicação e do diálogo apresentada por esta filósofa.

A outra idéia trazida por Arendt, está relacionada à compreensão de que a política é algo amplo, ou seja, diz respeito a todos, ao que é comum, a todo o ambiente social. Ora, este ambiente privilegiado é a cidade, é o mundo das relações sociais. A política então tem a ver com as relações entre as pessoas, os grupos, as instituições; com o que é comum, com o espaço que é de todos, com a cidade. A política, para Arendt, não deve se restringir às leis e às instituições, pois ela é ampla, deve orientar e conduzir a vida em todas as suas dimensões.

Por esta maneira de entender a política fica fácil compreendermos que a política não é uma coisa só para vereador, deputado, senador, governador e presidente. Ela diz respeito a todos e todas, ela é coisa de nosso dia-a-dia, pois todas as vezes que discutimos as questões que mexem com a vida social e comunitária, todas as vezes que nos referimos aos problemas que têm a ver com a renda, a saúde, a educação, com o emprego, a terra, estamos fazendo política. Fazer política, nesse sentido, é nos preocuparmos e fazermos algo pelo bem comum de todos. Então, concluímos: a política não é algo só de partidos, ela é meio e espaço para garantir o que é de todos os homens e de todas as mulheres.

Essa idéia de política, enquanto palavra e ação, relação de convivência e respeito pelo outro e pela a outra na diferença; enquanto construção e afirmação do espaço público, tem como alvo a liberdade. É na liberdade que se pode mostrar o que se é e o que se quer de forma aberta e interativa. Política é, pois, a palavra e a ação de construção da liberdade. Liberdade para pensar, ser e agir; para construir uma nova realidade.

Esperamos que este post suscite o interesse dos leitores e leitoras pela política, área tão fundante e fundamental de nossa existência e vida social. Veja outro post meu relacionado a este tema: "As eleições e a crise da representação" .

Quer acompanhar a política brasileira, indico os seguintes sites:

Brasil de Fato
Adital
Correio da Cidadania
Jubileu Brasil

Receba o E-book de Hannah Arendt gratuitamente. Acesse clicando aqui .

_________________________________________________

POLÍTICA: a arte da rapinagem?


 Há uma linda crônica de Rubem Alves intitulada "Jardim", em cuja inspirada construção ele termina assim: "Metáfora: somos a borboleta. Nosso mundo, destino, um jardim. Resumo de uma utopia. Programa para uma política. Pois política é isto: a arte da jardinagem aplicada ao mundo inteiro. Todo político deveria ser jardineiro. Ou, quem sabe, o contrário: todo jardineiro deveria ser político. Pois existe apenas um programa político digno de consideração. E ele pode ser resumido nas palavras de Bachelard:"O universo tem, para além de todas as misérias, um destino de felicidade. O homem deve reencontrar o Paraíso."

Apesar desta beleza de texto ter sido escrito há muito tempo, é oportuna e atual a reflexão de Rubem Alves. Ela nos força a afirmar que a "arte da jardinagem" transformou-se em "arte da rapinagem". A polis é vista como um espaço de rapinagem, onde muitos procuram abocanhar um pedaço, se articulando, fazendo as mais terríveis alianças, usando as mais abomináveis estratégias, tramando as mais ardilosas armadilhas, pois a rapina, nos tempos atuais, é a mais nobre das artes. Não importa o passado do rapinador, sua origem, história, suas práticas, seu discursos; o importante é aprender os ofícios da arte.

O jardineiro já não é o mesmo. Não são os mesmos os seus instrumentos. É preciso um novo olhar para perceber as mudanças que afetaram o jardineiro e seus instrumentos, pois estes últimos estão à serviço da rapinagem. Vejamos algumas dessas mudanças:

- O partido político, ferramenta natural e própria da "arte da jardinagem" caiu em descrédito geral. Não se muda ou altera o jardim pela via partidária. Só serve para a rapinagem. Como mediação política, não exprime mais a "vontade geral" nem é eficaz no cuidado com o jardim;
- A democracia representativa não serve mais ao jardim, o povo prefere a democracia direta. Esta última é mais eficiente e eficaz na luta pela manutenção do jardim e na defesa de seus direitos. É um grande inseticida contra a rapinagem;
- Infelizmente (ou felizmente?) dependemos das personalidades, figuras que personalizaram a política partidária. São homens e mulheres que incorporam a figura do jardineiro, mas a partir de si mesmos e de sua história. Conservam o poder graças à mídia, o palanque eletrônico;
- Fala-se mais hoje de direitos em relação ao jardim do que de ideologias e projetos transformadores;
- Defende-se o jardim com projetos sociais, em nome dos direitos, e muito pouco em nome das ideologias, de projetos ideológicos e estruturais;
- A luta pela preservação e manutenção do jardim é feita com base na valorização do poder local. Lutas amplas ou em nível macro perderam sua força ou não são mais necessárias.

O jardineiro é, por natureza, poiético, tem a capacidade de criar, é sensível ao jardim, está atendo às suas necessidades e linguagens; é, em essência, cuidadoso. O rapinador não enxerga nem entende isso.

O desafio é este: resgatar em nós, nas organizações e na sociedade a nossa vocação para a jardinagem. Mais que isso, sustentar essa vocação para continuar cuidando do jardim de todos e para todos: a nossa cidade, o nosso pais, o cosmos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Três dicas para se tornar um excelente professor  on-line! O ensino à distância (EaD) é uma escolha popular para muitos estudantes uni...