CRISE CIVILIZACIONAL: ALGUNS SINTOMAS
Em um de nossos artigos, falamos da crise ecológica como uma crise integrante de uma crise maior: a crise civilizacional . Comentamos que um dos grandes sintomas dessa crise é a destruição, o descuido e descaso com o meio ambiente, enfim, com os ecossistemas que garantem a reprodução da vida humana, aquática, mineral, vegetal e animal em nosso Planeta.
Vimos que nosso Planeta agoniza, pede socorro e uma parcela de pessoas, grupos, instituições e alguns poucos governos no mundo, em vários lugares, em diferentes territórios e de muitas maneiras, procuram fazer algo em sua defesa e preservação. A cidadania plenetária, de que tanto nos fala Leonardo Boff, ainda não é uma realidade no mundo, apesar de muitas e significativas iniciativas, como, por exemplo, o Fórum Social Mundial, a Campanha contra a construção do Oleoduto de Keystone XL, que vai atravessar os Estados Unidos até o Golfo do México para explorar as areias betuminosas, dentre outras.
Mas, além da destruição, descuido e descaso para com nossos ecossistemas, existem vários outros sintomas dessa crise civilizacional, já bastante enfatizados por vários cientistas, teóricos, importantes ativistas e organizações que atuam na área ambiental e dos movimentos sociais. Faremos referência a alguns desses sintomas de maneira abreviada, procurando socializar alguns dados científicos, também já bastante propagados, para mostrar que o nosso Planeta não pode continuar seguindo, orientando-se por um padrão autodestrutivo, aprofundando e consolidando um modo de nos relacionarmos com os bens naturais, materiais e imaterias que possuimos ou que estão a nossa disposição, e que foram construídos por várias civilizações. Na verdade, não vou dizer nada de novo, apenas compartilhar informações e muita indignação para com o que estamos fazendo com nossa Casa e para com as gerações vindouras. Inspiro-me aqui no que tem falado há muitos anos o teólogo Leonardo Boff, só para citar apenas um nome, que tem direcionado sua literatura para esse tema.
Quais os sintomas da Crise Civilizacional?
1. Descuido e descaso pela vida inocente das crianças
Completamos 25 anos de Convenção sobre os Direitos da Criança, o tratato considerado um dos mais importantes da história, segundo o UNICEF, pois mudou a maneira como as crianças são vistas e tratadas no mundo todo. Ratificada por 193 países, a Convenção articula um conjunto de direitos universais da criança, tais como o direito a uma identidade, um nome e uma nacionalidade; o direito à educação; e o direito aos mais altos padrões de proteção à saúde e contra abuso e exploração.
Segundo o Relatório “Situação Mundial da Infância/2015”, do UNICEF, há 25 anos, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Convenção sobre os Direitos da Criança. Desde então, os progressos vêm beneficiando milhões de crianças. Mesmo com o compromisso parcial e a atuação de governos e empresas, com os investimentos realizados para a melhoria da vida de centenas de milhões de crianças nas áreas sobrevivência infantil, educação, acesso a água limpa, dentre outras, o relatório denuncia que "ainda é muito
grande o número de crianças que enfrentam o futuro sem que suas
necessidades sejam atendidas, sem que seus direitos sejam realizados,
e frustradas no aproveitamento de seu potencial"(UNICEF, 2015).
Apesar dos (poucos) avanços, temos muitos desafios pela frente. O documento evidencia questões como as seguintes:
- Mulheres que pertencem à parcela dos 20% mais ricos da população do mundo têm uma probabilidade 2,7 vezes maior de ser atendidas por pessoal habilitado no momento do parto do que mulheres que fazem parte dos 20% mais pobres;
- No mundo todo, 79% das crianças mais ricas menores de 5 anos de idade têm seu nascimento registrado, mas apenas 51% das mais pobres são respeitadas em seu direito a uma identidade oficial;
- Enquanto 80% das crianças que vivem em cidades são registradas, essa realidade é constatada para apenas 51% daquelas que vivem em áreas rurais;
- Crianças que pertencem à parcela dos 20% mais pobres da população mundial têm probabilidade duas vezes maior de apresentar retardo de crescimento devido a nutrição deficiente e de morrer antes de completar 5 anos de idade do que crianças que fazem parte dos 20% mais ricos. Crianças que vivem em áreas rurais encontram-se em desvantagem semelhante quando comparadas àquelas que vivem em áreas urbanas.
Acesse o referido relatório para ver mais detalhes.
2.Descuido e descaso para com os jovens pobres
O HIV/AIDS tornou-se a principal causa de mortalidade dos jovens, seguindo-se a violência e as lesões. Atualmente, existem 10 milhões de jovens vivendo com HIV/AIDS, a maior parte na África e na Ásia. A difusão do vírus tem tido um impacto devastador na saúde sexual e reprodutiva dos jovens e das jovens. Estes segmentos estão entrando mais precocemente na adolescência e casando mais tarde. A saúde dos jovens também vem sendo afetada pelo consumo sem precedentes de drogas sintéticas em nível mundial. A procura de substâncias ilícitas entre os jovens dos países em desenvolvimento aumentou para níveis que atualmente tem semelhança com os países industrializados. As taxas de detenção dos jovens é muito elevada. O Brasil é, segundo a ONU, o país onde mais se mata com armas de fogo. Todos os anos são mortos 40 mil brasileiros, em sua maioria jovens.
3. Descuido e descaso para com a coisa pública
Não tenho dados suficientes para justificar esse descuido e descaso para com a coisa pública no mundo, mas o que temos lido, ouvido e discutido é que, pelo menos no âmbito da América Latina, para falar de uma realidade mais próxima de nós, há certo descrédito na democracia em vigência nos países da região, o que nos leva a concluir que a população da região não tem muito apreço pela forma como se cuida das políticas e dos bens públicos. Há uma pesquisa, realizada em 2006, do Instituto Latinobarômetro, sediado no Chile,que mostra que 58% dos latino-americanos apoiavam a democracia e, em 2007, este percentual baixou para 54%. A satisfação com o regime democrático também diminuiu neste período, saindo de 38% para 36%. Essa insatisfação tem como causas a corrupção, as políticas focalistas e compensatórias para os pobres, que não atingem os problemas sociais em suas causas estruturais; o baixo investimento em seguridade social, alimentar, em saúde, moradia, etc. Ainda é possível observar a predominância de altos índices de pobreza e miséria na região.
4. Descuido e descaso para com a sociabilidade nas cidades
Sabemos que mais da metade da população mundial, vive nas cidades. Apesar de estarmos vivendo em tempos de globalização, supondo-se que o mundo está mais integrado e sociabilizado, assistimos a processos de desenraizamento cultural e alienação social. Em grande medida, as relações humanas e sociais se caracterizam pela superficialidade, o entretenimento, o individualismo, o consumismo, a indiferença e o espetáculo. Pesquisas mostram que grande parte das doenças humanas no mundo (pós) moderno é decorrente do estilo de vida nas cidades, marcado pela competição, falta de tempo, baixas condições de habitabilidade, alterações do humor, dentre outros. O conjunto dessas e outras causas compromete a construção de uma sociabilidade capaz de garantir o cuidado com a vida, com as pessoas e com os bens sociais, culturais, econômicos e espirituais.
Temos certeza que a crise civilizacional, cujos (alguns) sintomas fizemos referência abreviadamente, está relacionada, em última análise, ao modelo de organização da vida social e da produção de bens, modelo esse ancorado na desigualdade entre os seres humanos, na competição desenfreada dos mercados, na exclusão e apartação social da maioria da população mundial, no desemprego, no abandono e etnocídio de crianças, adolescentes e jovens.
O desafio que temos pela frente é marchar na construção, em acentuado movimento na atualidade, de um novo ethos civilizacional , que sustente um novo modo de organizar e cuidar da vida no Planeta.
Vale a pena nos deixar inspirar e mobilizar por essa bela canção de Beto Guedes:
Vamos precisar de todo mundo
pra banir do mundo a opressão, para construir a vida nova
vamos precisar de muito amor.
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POBREZA DE EXPERIÊNCIA: O MAL-ESTAR DE NOSSOS TEMPOS
Queridos leitores e queridas leitoras desse Blog, nesse post de hoje quero compartilhar com vocês um tipo de pobreza que está se alastrando em nossos tempos, mesmo que estejamos vivendo em tempos caracterizados pela ênfase ao que é imediato, ao presente, ao agora, ao latejante ou pulsante; em tempos do primado do individualismo: “a liberdade de cada um imprimir sua exterioridade com selo de sua individualidade para nela poder reconhecer-se e fazer-se reconhecer” (Gabriel Monod).
Falo da pobreza de experiência. Essa questão tem povoado minha vida, minha mente e muitas discussões com jovens, grupos e organizações sociais.
Parece que cada vez menos, conseguimos perceber o sentido do que estamos fazendo no cotidiano de nossas vidas. Há uma sensação de mal-estar geral, como se nos sentíssemos distantes da realização de nossos sonhos e possibilidades. Pensamos e fazemos com certa mecanicidade ou instantaneidade nossas tarefas, atividades, projetos e afazeres. Quase sempre não sentimos adequadamente as coisas, as práticas e os processos que implementamos ou vivenciamos, pois eles parecem passar por nós, porque temos pressa em imprimir nossa marca de reconhecimento sem conseguirmos saber de fato se nos reconhecemos no que fazemos. Esse mal-estar se inscreve em nosso corpo, na ação e nos sentimentos, como bem nos ensina o filósofo Joel Birman. No corpo, porque sempre estamos achando que sua performance não está bem, que somos devedores em relação a ele; na ação, porque vivemos o tempo da hiperatividade, que a cada dia impõe-se a nós, fazendo-nos exigências múltiplas, num caminho de repetição de tarefas/atividades cujos objetivos quase sempre não são alcançados; no sentimento, porque vivemos um vazio no sentir devido ao excesso de exigências ao corpo, que não atinge a performance que desejamos, às ações que, apesar de serem múltiplas e repetitivas, parecem nunca atingir os seus alvos. Toda essa angústia expressa-se então em nossas emoções, sentimentos, os quais vão repercutir no corpo e impactar nossas ações, num movimento articulado de mal-estar.
Sem querer apresentar respostas para tão complexas questões nem receitas para as mesmas, creio que uma possibilidade de enfrentamento está na superação da pobreza de experiência.
Temos o desafio (e o poder) de reinventar o modo como sentimos e vivemos nossas experiências. E esse desafio implica:
1 – Entendermos que experiência é tudo aquilo que nos toca, o que nos passa, o que nos acontece, como nos ensina Jorge Larossa, e não aquilo que passar, que acontece;
2 - Reaprendermos a lidar de forma empoderada e determinante com os excessos de informação (vivemos na sociedade da informação), opinião, trabalho e com a falta de tempo. Esses excessos impedem que façamos e vivamos experiências, o que quer dizer: sentir e viver de forma mais plena o que nos acontece, nos deixar invadir pelo que nos afeta, ou seja, sentir o viver - que é ser e fazer; e viver o sentir – a expressão em nosso corpo das emoções benfazejas, do prazer, da alegria, o que nos faz mais humanos, realizados e felizes na vida.
3 – Assumir que só fazemos experiência – sentir o viver, o que nos acontece, o que nos toca, nos afeta, e viver o sentir - se “pararmos para pensar, para olhar, para escutar mais devagar, olhar mais devagar e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço” (Jorge Larossa).
4 – Pensarmo-nos como “territórios de passagem” da experiência”, como “estradas” da experiência, como criaturas abertas ao sentir e ao viver, nos tornarmos texto e contexto do que nos acontece, nos afeta e nos apaixona.
Tentando finalizar...
Podemos dizer, a título de não encerrar essa reflexão, que é a experiência que nos liga ao mundo, ao ser e ao viver. E que, sem nos tornarmos “territórios de passagem” dela, continuaremos mergulhados no mal-estar, que tanto nos adoece e produz morte na sociedade de hoje.
Quem tem medo da experiência?
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