No presente artigo compartilho uma breve reflexão sobre alguns pressupostos para o trabalho com as juventudes, principalmente os jovens e as jovens das classes populares. O pressuposto é algo que se deve considerar previamente, é quase um princípio teórico-metodológico que, no caso desta reflexão, deve ser tomado como orientação e postura na relação com esses segmentos.
Os princípios, aos quais farei referência aqui, parecem óbvios, uma vez que são respeitados, assumidos e vivenciados por muitos que atuam socialmente com as juventudes das classes populares. Proponho-me, pois, não só a reafirmar esses princípios, mas a refletir sobre suas implicações. Vamos a eles.
Não podemos falar de organização e mobilização das juventudes sem destacar as particularidades, as especificidades, as singularidades dos segmentos juvenis populares. Ou seja, sem fazermos referência aos jovens e às jovens, sujeitos e parceiros do trabalho socioeducativo desenvolvido por muitas organizações sociais e governamentais; sem fazer referência à condição e situação em que esses segmentos tecem sua cotidianidade e seus devires.
As juventudes brasileiras vivem e enfrentam condições e situações diferenciadas, portanto, vivem saberes e fazeres sociais variados, problemas e possibilidades diversas, controles e limites discrepantes; liberdades e subalternidades também diferentes. Os jovens e as jovens vivem uma condição caracterizadas por um série de problemas, desafios e limites, mas também carregada de possibilidades.
Considerar esses pressupostos, no contexto de uma crise ético-cultural por que passa o mundo, o Brasil, caracterizada por uma crise do sentido humano, implica a reafirmação do valor, da importância, do significado que reside na opção de trabalhar com os jovens, as jovens das classes populares, dos setores historicamente excluídos da sociedade. Penso que é a visão que construímos e compartilhamos, todos os dias no pensar e no fazer pedagógico e social, acerca dos jovens e das jovens com os quais trabalhamos, acerca do sentido e significado que atribuímos para nós mesmos/mesmas e para os outros em relação ao que estamos querendo, pensando e fazendo, é essa visão que orienta, norteia as intenções, as opções políticas que fazemos e proclamamos. Essa visão e o modo como a sentimos e vivenciamos é que faz a diferença frente a crise que vivemos hoje sobre o sentido do humano, sobre o papel que pode (ou não) ser protagonizado, de modo especial, pelos jovens e pelas jovens pobres de nosso país.
A condição juvenil é vivida de forma desigual e diversa no Brasil, em virtude da origem social e de níveis de renda familiar; das condições de moradia; em razão de desigualdades de gênero, de preconceitos e de discriminações que atingem diversas segmentos e etnias, indígenas e afro-descendentes; em razão de orientação sexual, gosto musical, pertencimentos associativos, religiosos, políticos, de galeras, de turmas, de grupos e de torcidas organizadas. Esses recortes, que funcionam como demarcadores de identidades, podem aproximar jovens socialmente separados ou separar jovens socialmente próximos.
Falamos aqui dos/das jovens das classes populares, das camadas empobrecidas de nossa sociedade, que vivem uma condição marcada por situações socialmente gritantes: dificuldade de acesso ao trabalho produtivo, ao poder de decisão política, aos benefícios econômicos do desenvolvimento; exposição extrema a altos graus de violência, discriminações sociais de vários tipos e perda de horizontes a longo prazo. Essas juventudes vivem sistematicamente 1) o medo de sobrar; 2) o medo de morrer – algum tempo atrás eram os filhos mais novos que enterravam seus pais; na contemporaneidade, são os pais (idosos) que enterram seus filhos mais novos em muitas regiões do Brasil; 3) sentir-se desconectado em um mundo conectado - as conquistas tecnológicas modificam a comunicação, a socialização, a “visão do tamanho do mundo” entre gerações; implica viver a juventude no presente momento histórico no qual a tensão local-global se manifesta no mundo de maneira contundente: nunca houve tanta integração globalizada e ao mesmo tempo nunca foram tão profundos os sentimentos de desconexão e agudos os processos de exclusão.
É dessas juventudes que estamos falando e é sua mobilização e organização que nos desafiam e exigem de nós compromisso, inserção sociopolítica, afeto, sensibilidade, competência pedagógica e metodológica, dentre outras exigências.
Reafirmar o lugar de onde partimos, reafirmar a opção política pelos jovens e pelas jovens pobres e excluídos/as, contra a pobreza e a exclusão, em nossas sociedade, aponta e nos desafia para uma série de implicações, as quais apenas pontuo de forma abreviada:
1 – Desorganizar e desinstituir as heranças e os dispositivos considerados como socialmente naturais, que atribuem à pobreza e, de modo particular, às juventudes pobres e excluídas, características ligadas à periculosidade, à criminalidade e à condição de não-humanidade (Coimbra & Nascimento, 2003), características essas cujos efeitos podem ser expressos, por exemplo, nos extermínios ocorridos cotidianamente contra as juventudes pobres, pelo significativo aumento de jovens cumprindo medidas de reclusão, entre outras situações. Muitas dessas heranças, dispositivos e características, construídas socialmente ao longo de séculos, sustentada e alimentada pela elite dominante e pela ciência (Medicina, Biologia, Direito, Pedagogia, Arquitetura, Urbanismo, dentre outras áreas), estruturam hoje nossas subjetividades sobre a pobreza, sobre os pobres e as juventudes. E são as visões docorrentes dessas heranças, dispositivos e características, com suas consequentes subjetividades, que vão orientar nossas opções e nosso fazer pedagógico.
2 – Problematizar e desconstruir a atual visão (despolitizadora) da cidadania. A cidadania das lutas populares que tinha uma perspectiva emancipadora, com a gradativa implantação das medidas neoliberais dos últimos anos, onde a nova ordem mundial começa a aparecer com os encantos e consequências da globalização do mercado, Estado mínimo, flexibilização do trabalho, desestatização da economia, competitividade, livre comércio e privatização, foi aos poucos sendo substituída ou contraída por uma cidadania de perspectiva liberal, onde a primeira qualidade da pessoa cidadã é a de estar pronta para ser aproveitada no mercado de compra e venda de mão de obra qualificada pela educação (Feltran, 2005). O cidadão é o sujeito de direitos, uma pessoa livre e criativamente autônoma e responsável, na medida em que é, também, o ator social formado (capacitado, treinado e habilitado) para desenvolver o exercício da cidadania, ajustando-se ao mundo dos negócios. Apesar das iniciativas, forjadas pelos movimentos sociais e populares, bem como pelas ONGs do campo popular, que fizeram avançar a luta social, a democracia e o acesso às políticas públicas nos últimos 10 anos,em quase todas as áreas sociais, as pesquisas e as análises demonstram que crescem veementemente a insegurança, o medo, o pânico articulados ao crescimento do desemprego , da exclusão , da pobreza e da miséria (consultar dados oficiais).
3 – Problematizar o discurso e a prática (portanto, o lugar, o papel e a forma) que prescrevem às juventudes a uma “nova forma” de política, que ocorre mediante a atividade/atuação individual e que contribuem para a integração dos jovens e das jovens, tendo como apelo maior o protagonismo para motivar os jovens à essa integração. No fundo, em última análise, trata-se de uma nova forma forma de participação que, em grande medida, neutraliza o potencial revolucionário e de mudança dos jovens, eliminando ou escamoteando os conflitos sociais e as contradições presentes na sociedade.
4 – Trazer à tona a destituição do social, ocasionada pelas mudanças resultantes da reestruturação produtiva, da reforma do Estado na perspectiva neoliberal e da globalização da economia. O social, além de passar a ser entendido como um “lugar” separado das demais dimensões (econômica, política, cultural) (Lautier, 1995), sofreu com as referidas mudanças uma reconversão em seu tratamento, em que a “questão social” , no contexto de elevadas taxas de desigualdade, passando de uma dimensão de política redistributiva, teoricamente produtora de justiça social, para localizar-se sobre seus efeitos, portanto para o seu tratamento em termos de medidas mitigadoras, setorializadas e focalizadas da pobreza, dentro de um modelo excludente (Ivo,2001). A pobreza é transformada em questão técnico-gerencial e como tal deve ser tratada, desvinculando-a de seus determinantes estruturais. Há, portanto, um deslocamento da política para a dimensão da competência para gerenciar os problemas sociais.
5 - Buscar novas compreensões e fazeres – saberes, sensibilidades, competências, habilidades, etc. - sobre o processo social, que precisa ser tomado em suas várias dimensões (inclusive intangíveis) e incorporar novas abordagens, onde possamos trabalhar a ação considerando três processos, conforme Alan Kaplan: 1) o processo do organismo; 2) o processo de expansão do profissional do social e a intervenção (interação entre os dois anteriores). Creio que as organizações governamentais e não-governamentais precisam incorporar essas novas compreensões.
É preciso problematizar nossos pressupostos no trabalho com os jovens e as jovens do Brasil. É preciso discutir suas implicações políticas, sociais e pedagógicas.
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